RELATOS DE UM VERÃO JIM #2 |SEMP’ABRIR
Testemunho – Sara Fradique (Semp’abrir – 2018)
Se há algo que sei que existe são as coincidências ou, melhor dizendo, coincidências da vida. A experiência pela qual passei do dia 24 ao dia 28 de julho do presente ano foi, sem dúvida, enriquecedora.
Tudo começou – não posso deixar de referir – por um simples convite do meu amigo Miguel para realizar a caminhada até Fátima com o grupo Semp’abrir. Uma vez que adoro partir a aventuras, não só pelo exercício físico, como também pela parte espiritual e social, decidi então aceitar (bem-dita a hora em que o fiz). Os instintos servem para nos coadjuvar a guiar-nos nas escolhas e, sem dúvida alguma, que pressentia que devia ir.
Após algum tempo dedicado à arrumação da mochila – tarefa crucial -, refleti, rezei e lá fui eu ao encontro do “desconhecido”. A respeito de estar um pouco reticente, quando me reuni com o grupo, reparei imediatamente na incrível boa-disposição e energia do padre Carlos. De forma geral, desde os mais inibidos aos mais extrovertidos, todos se mostraram acolhedores e amigáveis numas dinâmicas que se elaboraram inicialmente. À noite fomos distribuídos por quatro diferentes equipas, cada uma com dois monitores. No meu caso, sucedeu ficar no grupo verde e tinham-nos dito que mais tarde teríamos de optar por um nome para esta equipa. No meio de risadas e comentários nunca se chegou à conclusão de uma designação, todavia por mim teria sido “Os Verdocas” e jamais “Sporting Clube da Amadora” como alguém teimava em afirmar (já agora, eu sou da Damaia).
Quatro da manhã! Quatro da manhã foi a hora a que começámos a caminhar no primeiro dia. Após ter dormido em pleno chão, com dez por cento de conforto graças ao saco-cama, sentia-me um pouco dorida, no entanto, o entusiasmo por começar a grande jornada foi muito superior a isso. Entre as primeiras conversas, silêncios, conhecimentos entre todos, lá fomos seguindo até Santarém. Lembro-me que neste dia falei e fiquei a conhecer diversas pessoas nomeadamente o Rúben, a Margarida, a irmã Rosineide, o Nuno, o padre Ricardo, entre outros. Houve uma tarefa que foi concretizada dois a dois que achei muito interessante: carregar a mochila do outro. Tal como referi há algumas linhas atrás, a arrumação da mesma é fundamental, uma vez que a temos de carregar ao longo de todo o rumo. Isto significa que apenas o essencial deve ser transportado, porque por cada grama que se acrescenta, a carga e as dores parecem aumentar o dobro. E por falar em dores… São, antes de mais, inerentes a qualquer peregrino. Durante a pausa do almoço já sentia todos os minuciosos músculos das pernas a lamuriarem-se e, como não podia deixar de ser, já sentia as lindas e maravilhosas bolhas nos pés. Tudo faz parte, no pain no gain, como se costuma dizer.
A chegada a Santarém foi, então, a nossa primeira vitória. Estávamos de rastos, todavia ao mesmo tempo realizados e agradecidos. Sorte a nossa em termos perduravelmente connosco as mágicas mãos das enfermeiras Filomena e Patrícia, pois eram elas o nosso ponto de abrigo quatro ou cinco vezes num período de 24h.
Não é por acaso que é habitual dizer-se que o segundo dia é o que requer mais sacrifício, vai, de facto, de encontro à realidade. Foi altura de seguir até Minde, contudo, até lá… Bem, posso aqui revelar que no espaço de uma hora senti um pesar tão grande que se assemelhava a um pássaro possuir asas e, por razões alheias, não poder voar. Ao invés disso, eram as tais erupções à superfície da pele carregadas de líquido que insistiam em marcar presença nos dedos dos meus pés, independentemente do que usasse para as tentar evitar. Por breves momentos, pensei que o melhor seria parar, não obstante rapidamente me apercebi do quão idiota estaria a ser. Com este sofrimento interior o almoço e descanso em Olhos d’Água foram como que uma lufada de ar fresco. Aqui comentei com a irmã Roseinede o facto de, há muitos anos atrás, as pessoas fazerem estas peregrinações sem qualquer tipo de ajuda; sem ténis de marcas especiais; sem mochilas apropriadas para caminhadas; sem enfermeiros; sem pensos, cremes ou quaisquer tipos de medicamentos; no fundo, sem nada. Com um pouco de sorte bebiam água, quando esta era disponibilizada e andavam nas suas modestas e, quem sabe, esfarrapadas sandálias. Ela concordou comigo e contou-me acerca do que vivenciou em Moçambique, onde viu igualmente diversas crianças a andarem com o mais simples calçado que podiam ter. Aproveito para mencionar que a irmã foi uma (de tantas outras) das pessoas que me marcaram. Era muito querida e geralmente, enquanto caminhava, ia contando algumas das sua ricas experiências e, o mais surpreendente é que não demonstrava o seu cansaço e/ou sofrimento.
Etapa seguinte: Minde. Esta que havia sido a mais difícil para alguns, para mim acabou por se tornar a mais agradável, no que toca ao nível espiritual. Note-se que se trata de atravessar uma serra, serra esta muito íngreme e magnífica, quanto à paisagem que oferece. Ao longo dos percursos fui sempre acompanhada por alguém ou com algum grupo, porém o trajeto desde a montanha até chegar à cidade realizei-o apenas com a minha própria companhia. Na verdade, não estava apenas a minha, como também com a d’Ele. As notáveis dores pareceram amenizar e foi possível observar a natureza, sentir o ar puro, falar com Ele, tudo de forma espontânea e real.
A chegada a Minde foi como um simples chegar a casa: tomar banho, pôr a conversa em dia, jantar e ir dormir. Havia uma convicção que penso que fosse comum a todos, tendo atingido este local, amanhã estaríamos certamente em Fátima vivos e alegres. Afinal de contas, o “pior” já tinha passado.
Último dia a caminhar: 19km até Fátima. “Espera… Somente 19km?” – foi a primeira ideia que me passou pela cabeça, assim que soube. Apercebi-me, posteriormente, que o psicológico afeta bastante o físico. O facto de ter pensado que seria mais acessível do que nos outros dias fez com que o peso da mochila, as bolhas ou qualquer outra complicação nem sequer me incomodassem.
Os últimos quilómetros até ao nosso destino fi-los com o alguém realçado parágrafos atrás. Este predicado foi destacado por se tratar de mais uma pessoa que me assinalou ao longo de toda a jornada. Ainda que tivesse realizado troça de mim sempre que tinha oportunidade, somente por ser oriunda da localidade mais famosa do país – não é para todos –, revelou-se alguém muito humilde, paciente, bom ouvinte e sempre com um sorriso na cara, nunca manifestando também qualquer tipo de sofrimento… Quanto mais, poder-se-ia ouvir um eventual “estou um pouco cansado”. O padre Ricardo demonstrou-se ser assim e foi indescritível a sua forma de ser, bem como a sua eupatia. Após termos conversado acerca de inúmeros assuntos, alcançámos o que já há três dias todos ambicionávamos: Fátima. Em todo o grupo escutava-se “finalmente” e “graças a Deus”, dado que o panorama geral era de agradecimento.
Jamais alguma vez um quarto com uns simples quatro beliches me fez ter a sensação que estava num hotel de cinco estrelas; só a evidência de haver lençóis, uma banal mesa-de-cabeceira e um genuíno armário era um luxo.
Os alongamentos são essenciais, quando existe muito esforço físico e, por esta mesma razão, aproveitava para os elaborar com o caro jovem Nuno, jovem este que se tornava, muitas vezes, o “animador da malta”, com o seu peculiar chapéu de palha e cajado de madeira. Era ele que contava uma piada ou outra nos instantes em que o ambiente se tornava um pouco mais silencioso. Depois de termos sido instalados no centro Paulo VI, esta mesma sessão de alongamentos mais do que indispensável, foi ao mesmo tempo um alívio.
Entre almoços, jantares, missas, orações, risadas, diálogos e outros, o final aproximava-se. Já sabia de antemão que a despedida não iria ser, de todo, fácil. O almoço partilhado foi, para mim, mais complicado do que esperava. As lágrimas que me escorreram não foram intencionais, tendo feito os possíveis para as controlar, no entanto, conseguiram ser mais fortes do que eu. Melancolia… A experiência foi, na verdade, esplêndida e é interessante observar como, em tão pouco tempo, gestos simples se tornaram em apoios incondicionais; os mais tímidos “olás” se transformaram em “estás bem? Precisas de ajuda?”; um “não consigo mais” levou a dar uma mão ou a carregar a mochila do outro; e em como uma oração nos guiava e nos mantinha serenos, independentemente das eventuais dores que pudessem surgir. Iria sentir saudades de todos, inclusive daqueles que foram o nosso suporte e que iam na carrinha, dos tratamentos bondosos das enfermeiras, da comida tão bem confecionada pelas cozinheiras, ao fim ao cabo, de tudo.
E tudo o que começa acaba… Mas tudo o que acaba pode também recomeçar. É nisto que hoje em dia me agarro por me sentir tão grata por ter aproveitado esta fantástica oportunidade, bem como – espero eu -, saber que poderão haver outras ocasiões, com novas experiências com todo o grupo. Daí ter iniciado o texto a falar sobre coincidências. É que esta foi, indubitavelmente, uma vivência inesquecível que não teria sido possível, caso tivesse optado uma escolha diferente.
Anseio por novas aventuras. :)
Obrigada a todos.
Sara Fradique, 24 anos, Amadora